terça-feira, 8 de maio de 2012

[À Descoberta de Vila Flor] Uma catedra na montanha

Contemplado no sentido da linha de cumeada, ou cá de baixo das cercanias do cemitério, é que se compreende o motivo por que lhe chamam o "Frade": perfeitamente se distingue um enorme capuz monástico, de pedra contorcida e chamuscada pelo incêndio dos séculos, um pouco afastado do fraguedo principal onde existia, e penso que ainda existe, de difícil acesso e meio dissimulada por giestas e carquejas, uma gruta capaz de abrigar das intempéries, à vontade, três ou quatro pessoas.
Ganhou o rochedo, por via da fradesca similitude, significado mítico. Conta-se que, em invernoso entardecer, medievo monge ali se radicou a fim de sarar, com as compressas e ungüentos naturais da solidão da serra, as feridas abertas na alma pelo diamante de um amor impossível. Como nem ambiente e renúncia lhe houvessem aquietado a lancinância da paixão, o contristado religioso desapareceu na espessura verde da serrania, tendo deixado o hábito a simular a sua presença, que ainda hoje pode ver-se, mas transformado nas sinuosidades de um barroco.
Não tem esta evocação por objecto reconstituir as passadas imémores do frade rendido a poderoso enlevamento. Vamos esquecê-lo. O meu intento, hoje, é bem mais desambicioso: apenas recordar, cinco décadas volvidas, a caverna do rochedo que se transformou, por tardes de nevoeiro pingoso, em escola de história e literatura...
A coisa passou-se assim. Eu, o Guilhermino Mesquita (há meses, infaustamente, para sempre desaparecido) e o José Augusto tínhamos ficado pela 4.ª classe. Aprendíamos ofícios sem grandeza. Imposições da ordem iníqua estabelecida. Havia que respeitá-Ia. O repasto do saber não era para a totalidade dos indivíduos, apenas para os que podiam pagar o exorbitante bilhete de ingresso. Cinco ou seis privilegiados tinham ido estudar para Bragança, Porto, Coimbra... Quando vinham a férias, presunçosos, esmurravam a nossa ignorância com a autoridade dos seus conhecimentos... E nós, perplexos, aparávamos-lhes os golpes com o vulnerável elmo da impotência, uma vez que não podíamos dar-lhes troco adequado.
Um dia, com o piedoso sentimento de quem se sagra cavaleiro, à luz de um poente de Outono, proclamáramos bem alto, até à contorção das agulhas dos pinheiros, o clamor do nosso protesto: doravante iríamos conquistar, pelo nosso esforço, algo do que os outros iam aprender, longe, à custa da capacidade económica dos pais.
Juntámos, tostão a tostão, os trinta escudos - uma fortuna! - indispensáveis para mandar vir de Lisboa o Compêndio de História Universal, por António Mattoso, então adoptado nos liceus. Eu contribuí, de imediato, com "A Chave de Os Lusíadas" que o Pim me havia oferecido, onde cada estância do poema era claramente interpretada, em notas de rodapé. E lá íamos, serra acima, todos os domingos, chovesse ou ventasse, para a gruta do "Frade", onde nos instalávamos e fazíamos o ponto do que aprendêramos durante a semana.
Alguns supostos eruditos da terra, vendo-nos com "Os Lusíadas" debaixo do braço, não perdoavam a sem-medida do atrevimento: "Melhor fora que lêsseis 'As Pupilas do Sr. Reitor' ou 'O Amor de Perdição'. Camões não é para os vossos dentes!"
Recebíamos a censura como um vexame, porque compreendíamos - e, sobretudo, sentíamos - o que lêramos. E vibrávamos não só com a epopeia, mas também com o musical arrebatamento da lírica. Sabíamos, até, alguns sonetos de cor.
Entretanto, ocorreu acontecimento cultural de inexcedível valor, na passividade da Vila: o emérito Raul Correia instituía uma biblioteca, de leitura domiciliária inteiramente gratuita. Que dia grande, esse, gravado a sol nas nossas almas!
Começámos, já não sei como nem por quê, por Stefan Zweig.Nada sabíamos do seu drama de humanista expatriado pela hediondez nazi, dos seus livros proibidos e incinerados na praça pública, do seu trágico fim, em Petrópolis, próximo do Rio de Janeiro. E o prestante escritor austríaco foi-nos conduzindo para outras esferas: Erasmo, Dickens, Dostoievsky, Tolstoi, Nietzsche... Quanto entusiasmo deposto na leitura de "Maria Antonieta", "Fernão de Magalhães", "O Mundo de Ontem"... Que pena não ter existido um gravador de som, nas paredes do "Frade". Só ele poderia testemunhar do nosso enlevo.
O certo é que, a partir de então, quando os estudantes vinham em gozo de férias, se não sabíamos as leis da Física, nem demonstrar teoremas ou balbuciar Inglês e Francês, como eles, falávamos-lhes dos livros que havíamos lido e dos quais nunca tinham ouvido falar! Era a hora alta do nosso desforço.
Pouco durou esta cátedra na montanha. Em 1950 partia para Lisboa, onde, finalmente, ia poder dar corpo ao sonho de uma vida - estudar!
Muitas vezes me veio à lembrança a aprendizagem na caverna que, ao contrário da de Platão, não era de sombras, mas de inextinguível esplendor, pois nela germinaram algumas ideias básicas acerca do que deve entender-se por Cultura, talvez engrandecidas pelo esvoaçar do espírito do confesso que, vítima de um amor impossível, ali deixou o hábito para sempre esquecido, ou para sempre lembrado na perpetuidade da pedra afeiçoada pelos ventos volúveis da montanha...

João de Sá, do livro Mãe-D'água - Ficções e Memórias, publicado em 2003 pela Câmara Municipal de Vila Flor.

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Publicada por Blogger em À Descoberta de Vila Flor a 5/08/2012 07:30:00 AM

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