domingo, 23 de fevereiro de 2014

[À Descoberta de Vila Flor] Um vendedor de felicidade - conto

Manhã. Feira dos Quinze. No bulício da Praça, um círculo de olhos deslumbrados, para onde convergiam as atenções dos feirantes, como se lá estivesse a redenção das suas faltas e o inicio de um destino feliz.
Meu padrinho oferecera-me dez tostões para comprar um automóvel de folha-de-flandres. O dinheiro fazia-lhe falta, pois vivia com dificuldades económicas, mas não gostava de me ver de cordelinho entre os dedos, pelas ruas, a puxar uma lata de conserva vazia. Os simulacros não eram do seu agrado. A tenda dos brinquedos ficava longe. Tinha tempo. As crianças têm sempre tempo, o que é uma enorme vantagem sobre os adultos. E a minha curiosidade compeliu-me a abrir uma fenda naquela verdadeira muralha humana.
Afastando as calças de burel e cotim com odores a terra estrumada, consegui colocar-me na primeira fila.
Um vento fresco levava para longe os clamores da feira, e, em volta da improvisada arena, tudo parecia suspenso das notas de um cornetim enrouquecido e oxidado. Nos sons, algo mais que vibrações de palhetas; a convocatória, a intimação dos antigos deuses. Tangia-o um homem de olhos cintilantes como os dos encantadores de serpentes.
Sentado na areia, entregue à infinitude de um outro sonho, um garoto debruava os brados do instrumento com rufos compassados de tambor.
Em volta, entre os assistentes, nem uma palavra. Todos, até os mais atilados, faziam o jogo do mago. Integravam-se, sem mínimo desajuste, no círculo expectante — cenário humano uma representação em que os aplausos eram substituídos pela dádiva dos olhares a explodir de pasmo.
O homem pousou o cornetim. Mas o rufo do tambor, numa cadência mais lenta, continuava a alimentar a chama do enigma.
Era o momento da domação do fogo, iniciado com a solenidade de um rito, para o qual o músico ambulante, como adivinho que se preza, cingira as espáduas com um manto de seda cuja cor fora bebida pelo sol e a chuva dos caminhos do mundo.
Então, às golfadas, começou por libertar chamas amarelas, verdes e azuis, que os seus dedos captavam depois, no espaço, fazendo-as regressar, inofensivas, ao ponto de partida.
O mistério, desnudado, oferecia-se à receptividade das imaginações: estava-se perante autêntica manifestação de triunfo sobre o baluarte inexpugnável do impossível.
Aos meus olhos de criança, na sua capa de seda desbotada, o estrangeiro personificava o poder ilimitado e adquiria um nimbo de sobrenaturalidade.
Após ter extinguido definitivamente as chamas, o homem aproximou-se, deixando cair dos olhos sinais de momentânea convivência com forças sobrenaturais, para além do espaço e do tempo.
O garoto suspendera o rufo do tambor. E a voz do mágico elevou-se nos sons inarmónicos da feira:
- Meus senhores, apenas por um escudo não deixem de comprar a felicidade! Não desprezem esta ocasião única! Amanhã estarei longe e o meu caminho jamais se cruzará com os vossos!
Algumas moedas de dez tostões tombaram no maravilhoso das suas mãos. Em troca entregava um papelinho colorido, cuidadosamente dobrado.
Aproximei-me mais. O encantador do fogo reparou em mim. Acariciou-me os cabelos. Senti-me transportado a um mundo maravilhoso. E os dez tostões saltaram-me dos dedos. Renunciara ao carrinho de lata reluzente, la pensando na justificação a dar a meu padrinho (sabia que era feio mentir), quando me voltasse a ver a arrastar a caixinha de conserva.
Já não me lembro do que dizia o meu quadradinho de papel. Sei que o guardei num bolso dos calções, cuidadosamente, e que também sorri para o céu sombrio onde a onde esfacelado por um sol enfraquecido.
E o dia passou.
À noite desejei voltar a ver o bruxo que assim dispunha da vida dos outros, lançando na aridez das suas almas, por pequenas quantias, sementes de perpétua ventura. Queria perguntar-lhe como conseguira aquele poder. Pedir-lhe que me considerasse seu discípulo, por instantes, pois desejava transformar tudo à minha volta! Era preciso que me transmitisse os seus recursos, mesmo sem lhe dar nada em troca, pelo simples facto de lhos prolongar e engrandecer. Era necessário vencer o ódio, a pobreza, a fome, a morte. Era urgente tornar todos os homens mais felizes. Mas todos. É que foram poucos, muito poucos os que, por acaso, vieram à feira dos Quinze.
A Praça estava deserta. Já não era a hora do encantamento. As tílias contorciam-se sob as sacudidelas do vento. E os despojos da feira cirandavam numa dança de negra solidão.
Num recanto, ao fundo, projectado pela abertura de uma barraca de lona, um triângulo de luz.
Espreitei.
Lá dentro, sentado num caixote, cabeça pendida sobre o peito, impotente e imóvel, o domador do fogo, o vidente do destino dos homens, velava o cadáver do filho.
A um canto, inútil, o tambor destruído pelos pneus da camioneta que, ao fim da tarde, ocasionara o desastre.
Voltei a lembrar-me do encontro com os silfos, na manhã deslumbrante e próxima, quando as nuvens, subitamente, se transformaram em fantasmagóricas edificações. E tinha presente, sobretudo, a razão por que voltara ali!
Era indispensável continuar a crer. O homem da transfiguração adiava, decerto, a pronúncia da frase mágica: "Levanta-te e caminha!"
Espreitei de novo.
O mago soerguera a cabeça. Colada no olhar, a impotência de todo o homem. Sulcos de lágrimas estriavam de vulgaridade a pasta branca da sua máscara de dor.
O meu ídolo chorava, como qualquer mortal, ante a evidencia do irremediável.
Caminhei ao longo da Praça, desencantado e vazio. Ninguém me transmitira o poder de transformar o mundo de um momento para o outro. A natureza revestia-se de exactidão. As nuvens eram apenas as nuvens e o vento era simplesmente o vento!
Procurei depois, nos bolsos, o papelinho do meu destino feliz. Amarfanhei-o nos dedos. E o vento arrastou-o para o mistério da noite.
Conto de João de Sá, do livro "Um caminho entre oliveiras", 1998
Este foi um dos livros que o autor me autografou em em 2008, com as palavras "pelo que nos une no amor à terra". Em mais um aniversário do seu falecimento, as suas palavras continuam vivas e cheias de magia.

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Publicada por Blogger às À Descoberta de Vila Flor a 2/23/2014 12:47:00 da manhã

sábado, 22 de fevereiro de 2014

[À Descoberta de Vila Flor] Amendoeiras em Flor 2014

Está tudo pronto para se iniciarem amanhã as atividades do programa das Amendoeiras em Flor 2014.  O programa deste ano é, de longe, um dos mais ambiciosos dos últimos anos e isso é bem visível nas estruturas que foram montadas ou adaptadas para acolherem expositores, espetáculos musicais e outras iniciativas.
A transmissão em direto pela TVI do programa Somos Portugal é sem dúvida um momento alto das atividades, mas não só. Há imensos espaços de exposição, que hoje ainda estavam vazios, mas amanhã estarão repletos do que de melhor se produz no concelho.
A diluição da feira TerraFlor em eventos que vão acontecendo ao longo do ano permite dar mais alento a estes pequenos certames que doutra forma nunca poderiam atingir a dimensão que pretendem alcançar.
Vamos esperar que o concelho consiga uma grande projeção e que os produtores e artesãos consigam boas vendas, porque a vida não está fácil.



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Publicada por Blogger às À Descoberta de Vila Flor a 2/22/2014 12:04:00 da manhã

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

[À Descoberta de Mirandela] À Descoberta de Barcel

 Não há melhor maneira de conhecer o concelho do que percorrer os locais,  visitar as aldeias, desbravar os caminhos, a pé. Foi isso o que aconteceu no dia 8 de fevereiro, em Barcel.
O Município organiza, com frequência, passeios pedestres por montes e vales que podem ser feitos por todos, mediante inscrição prévia. A minha vontade era participar em todos mas nem sempre é possível. Por isso foi com satisfação que me dirigi a Barcel para fazer um percurso pedestre.
A aldeia de Barcel não era totalmente desconhecida para mim. Lembro-me de, em adolescente, atravessar o rio Tua numa balsa vindo de Ribeirinha, para fazer uma partida de futebol em Barcel. Mais recentemente, há cerca de um ano, fiz um curto passeio pela aldeia e tirei algumas fotografias.
Estava previsto percorrer 9 km, sendo a caminhada de grau Difícil. Não sei se foi o grau de dificuldade ou se foi o instabilidade das condições atmosféricas, fiquei com a ideia de que o número dos participantes não chegava ao de outros eventos no género. Só contam os que aparecem.
Afinal o tempo até não esteve mau, com ameaça de chuva mas deu para fazer todo o percurso sem problemas.
 A concentração aconteceu no centro da aldeia. A primeira etapa foi uma visita ao local de Longra, local onde por ventura muitos dos caminhantes nunca tinham estado.
Durante algum deslocámo-nos próximo do rio Tua para jusante mas rapidamente entrámos em terreno de forte inclinação. A paisagem não estava muito atrativa, mais pelas condições atmosféricas e pela estação do ano, porque acredito que noutra altura do ano valerá bem a pena fazer o mesmo percurso.
Não foi preciso andar muito para chegarmos ao ponto mais alto da caminhada. Percebi, mais tarde, que cortaram alguns quilómetros à caminhada prevista.
Ainda pensei que fossemos subir ao marco geodésico de Longra, mas apenas passámos perto.
Entrámos no percurso descendente já em direção a Barcel. Visitámos o cruzeiro e as alminhas, onde se voltou a concentrar todo o grupo.
Seguimos depois para a igreja matriz, onde tive muito gosto em entrar. Já tinha estado no adro, mas nunca tinha entrado.
O grupo deslocou-se depois para o salão da freguesia onde chegámos ainda bastante cedo, mas já com vontade de comer alguma coisa.
Foi servida uma canja de galinha, bastante saborosa. Havia também variadas sandes, folar de carne, bolos, fruta, sumo e vinho.
depois de aconchegado o estômago, ainda houve "coragem" para alguns passos de dança, antes do autocarro anunciar o regresso a Mirandela.
Como me desloquei em carro próprio para Barcel, aproveitei para dar mais um passeio pelas principais ruas, mas como disso no início, as condições atmosféricas não eram as melhores para fazer fotografias.
As pessoas de Barcel receberam-nos muito bem e a aldeia é bastante simpática, implantada numa zona ribeirinha muito bonita que será muito interessante continuar a visitar no futuro. Até lá, ficam algumas fotografias do dia 8.



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Publicada por Blogger às À Descoberta de Mirandela a 2/21/2014 11:19:00 da tarde

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

[À Descoberta de Miranda do Douro] Sabores Mirandeses 2014

O festival Sabores Mirandeses que se realizou em Miranda do Douro nos dias 14, 15 e 16 de fevereiro foi uma boa desculpa para passar estes dias no concelho, embora não fosse necessário, porque o concelho já oferece motivos mais que suficientes para me cativar, mesmo sem festival.
À volta dos sabores desenvolvem-se uma série de atividades que atraem muita gente e mostram o grande potencial que o concelho tem.
No campo da gastronomia, o festival é a maior montra do que de melhor se produz no concelho. Este foi a XIII realização do evento. Ao longo dos anos muitas cozinhas tradicionais foram aprimorando a arte de fazer fumeiro e muitas mãos habilidosas tornaram cada vez melhores um conjunto de doces e bolos que também são imagens de marca.
Na área do artesanato também não faltam bons produtos, únicos, como a capa de honras mirandesa ou as cortantes navalhas e faças que se fabricam em vários locais do concelho.
A animação musical não tem necessidade de recorrer a grupos exteriores ao concelho, porque há um bom leque de grupos de Pauliteiros e Pauliteiras e estão a constituir-se novos grupos que tocam instrumentos tradicionais, muitos deles já com CD's editados. A juntar a tudo isto a TVI realizou a partir de Miranda do Douro o programa Somos Portugal, em direto, das 14 às 20 horas de domingo.
Não me foi possível acompanhar a maior parte das iniciativas mas passei muito tempo no Pavilhão Multiusos, fotografando e saboreando alguns dos petiscos que se encontravam à venda.
No dia 15 realizou-se ao I Concurso de Tabafeia Mirandesa. Tabafeia é o nome dado à alheira em Miranda do Douro. Com este concurso nota-se uma preocupação da Câmara Municipal e da Associação Sabores de Miranda neste produto. O processo de certificação já foi iniciado e este concurso foi mais um passo para concentrar atenções no produto. Apresentaram-se 10 concorrentes que foram apreciadas por um leque de três provadores, que selecionaram as 3 melhores Tabafeias.  Gostos não se discutem, mas a verdade é a de que a atribuição dos prémios se refletiu nas vendas. Os três produtores vencedores conseguiram vender todo o stock com grande rapidez.
Durante o dia apresentaram-se dois grupos de Pauliteiros, os de Sendim e os de Palaçoulo.
À noite atuou a Banda Filarmónica Mirandesa, cada vez mais jovem e alegre e o grupo Lenga Lenga. Estive sem ouvir os Lenga Lenga até ao ano passado, mas agora já tive o prazer de os ouvir  e ver 3 vezes. Gosto muito da música tradicional. A flauta pastoril é o instrumento que mais admiro e o grupo faz bom uso deste instrumento.
O movimento na feira também aumentou bastante com a chegada dos participantes no Passeio TT e da Montaria ao Javali realizada no termo de Vila Chã de Braciosa, onde foram abatidos 4 javalis.
O domingo amanheceu mais luminoso e sem chuva, o que permitiu um largo passeio pelos arredores da cidade em busca das amendoeiras em flor.
Ao início da tarde começou a transmissão em direto pela TVI do programa Somos Portugal. Não sou apreciador do tipo de música que o programa apresenta e os apresentadores têm cada vez uma linguagem mais ordinária. Por vezes dão até uma imagens distorcida do concelho, ridicularizando os entrevistados e gozando com os produtos. Não posso é negar que estes programas atraem muitas pessoas!
 Uma curta passagem pelo Largo D. João III fez-me perder algumas atividades como o II Concurso de Mel do Planalto Mirandês e o I Concurso de Bola Doce Mirandesa. No Pavilhão atuaram também o Coro da Universidade Sénior de Miranda do Douro, Ls Mirandum e Varibombos Lérias.
O espaço estava a abarrotar de gente e as vendas ocorriam a bom ritmo. Já no dia 15 vi algumas bancas praticamente vazias, porque tinham vendido todos os seus produtos.
Quase no final da feira atuaram os Pauliteiros de Malhadas.
Os participantes na Montaria ao Javali, ocorrida durante a manhã em Paradela não fizeram o gosto ao dia e  não abateram nenhum animal. Os participantes no no passeio BTT tiveram sorte com o tempo, mas sei bem como são os caminhos do concelho quando estão encharcados.
Quanto à atividade VI Rota das Arribas do Douro, nem sei de que constou! Não me lembro de ver nenhum cartaz... seria um passeio pedestre?
Não fiz nenhuma refeição no recinto do festival. Só depois de muito procurar e que fui informado que o dia 14 foi o Dia do Fumeiro, o dia 15 o Dia do Cordeiro Mirandês e dia 16 o Dia da Vitela Mirandesa. Realmente estava no programa, mas passou-me despercebido. Não me parece que o certame atraia visitantes para comerem no recinto. Claro que os participantes nas batidas, provas de TT, de BTT, e expositores já são muita gente, mas não é destes que estou a falar. Pode ser uma estratégia para que os visitantes se distribuam pelos restaurantes da cidade, mas parece-me uma má opção.
 Acho que no recinto da feira devia haver mais alternativas paras as pessoas provarem os bons pratos mirandeses, fossem eles de cordeiro, de vitela ou outro.
O Festival Sabores Mirandeses foi um excelente ponto de encontro, para rever amigos, uma mostra excecional do fumeiro, doçaria, cutelaria, mel, frutos secos e outros produtos dos do concelho. Compradores não faltaram e, pelos comentários que ouvi, as vendas correram muito bem.
Nos próximos dias não vão faltar Sabores Mirandeses aqui em casa.

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Publicada por Blogger às À Descoberta de Miranda do Douro a 2/19/2014 01:06:00 da manhã

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

[À Descoberta de Vila Flor] e de repente é noite (XXXIV)

 Não é sono nem desmaio nem esquecimento.
Talvez a transmutação adiada da pedra.
Uma palidez que já não lembra
coisas deste mundo.
O pouco que de cá levou
só se adivinha no afilado dos dedos
extenuados de tanto voo
contra os portais da adversidade.
O resto é o que dela em nós ficou:
a paciência dos seus rumos solitários,
o som das suas fontes interiores.
O que se apaga deixa um espaço
para a fatalidade de outros gestos.
Por isso tudo em volta se concentra
numa harmonia apenas intuída,
porque já não ressoa nos sentidos.

Poema de João de Sá, do livro "E de repente é noite", 2008.
Fotografia: Cabeço de S. Pedro, Lodões.

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Publicada por Blogger às À Descoberta de Vila Flor a 2/03/2014 12:57:00 da manhã