quinta-feira, 7 de novembro de 2013

[À Descoberta de Vila Flor] Em louvor da Terra e da Gente Transmontanas

 Se o poeta João de Sá fosse vivo completaria hoje 85 anos. Apenas o conheci nos últimos anos de vida, depois de conhecer a sua escrita, que me fascinou e me fez gostar de forma quase incompreensível de Vila Flor.
O poeta vagueia algures entre o Facho e o Frade acompanhando com o olhar as pombas da igreja e suspirando pelo aroma da glicínia de sua casa.
Publico hoje um poema de 1962, poema com que João de Sá alcançou o 1.º Prémio nos Jogos Florais Transmontanos do Clube de Vila Real.
Esta ligação à terra, à serra, aos horizontes largos que a vista alcança, acompanharam-no toda a vida. Nos seus últimos poemas, 50 anos mais tarde, a serra, continua presente, com a mesma força, com tonalidades várias mas sempre com sentimentos intensos.
E no dia de hoje, talvez ganhe coragem para subir à serra. É apaziguar admirar as cores das videiras pintadas de outono e é uma justa homenagem declamar baixinho o poema cravado na rocha no alto da serra.

Granito e altura!
Firmeza e ânsia de se ir mais além,
Meta que se desloca e não se alcança
E mais alinda o gesto da procura...

Vento em correria,
Parecendo ultrapassar o céu e a terra
E o gémeo de Van Gogh
Vertendo novas cores por sobre a serra.

Se uma canção perturba
A solidão do monte, de tão pura
E sentida ergue-se tanto,
Que o azul transborda no cristal da taça
E tomba sobre as notas desse canto.

Manhãs de neve, em que a paisagem
É um bailado fantástico de cisnes!
Silêncios brancos sobre velha fonte.
Dádiva do mistério ao nosso sonho
Perdido na distância do horizonte...

Tudo se passa muito além de nós
Mas tudo é simples, puro, sem tamanho:
Um perfume indivisível, uma flor,
Um vôo de ave, a fimbria dum rebanho,
Uma canção, dorida, de pastor...

Sentimos ânsias de abrir com jeito
O coração
E introduzir nele uma semente.
Duma matéria embora bem diferente
Casa-se com a terra o nosso peito!

Olhos volvidos para além do mar...
Lábios de encantamento primitivo...
O ar salgado não os fez gretar,
Sabem a frutos e a grãos de trigo.

Inatingível, no azul da altura,
Quanto mais perto dela mais distantes...
O sagrado padece da lonjura.
Por isso temos que nos ausentar
Se quisermos que ela nos pertença
E nos caiba, inteira, no olhar!

A tua gente tem a alma de granito!
Rasga as mãos, a sorrir;
Sucumbe, sem um grito:
Lábios que tem sede e chamam pelo sol!

Olhos de abismo
- Duas aves, pousadas sobre a alma
A sondar-lhe as lonjuras...
Olhos de espaço, onde se projecta
O mistério sagrado das alturas.

Perfis morenos
Que o escopro do vento alevantou
Num recanto do espaço.
E as raízes vão beber mais fundo
A seiva que lhes há-de erguer o braço!

Homem de ontem. Homem de amanhã.
Perto ou longe, sempre o mesmo homem.
Uma fé viva onde ele estiver presente,
Pois ele é como que um prolongamento
Da vastidão da serra-mãe ausente!

Homem da serra, afeito a ver subir
As águias e os milhafres
Que depois se diluem na lonjura.
Homem do monte - símbolo da terra,
Mas ânsia estranha de maior altura!

Homem do longe!
Há um rito de amor
No gesto com que lanças sobre a terra
Uma simples semente.
E o milagre é sempre uma flor,
Um diadema a ornamentar-lhe o ventre.

Volúpia de criar!
Fechar as mão e abri-las, incendidas,
Num gesto natural,
Sobre a palpitação de novas vidas.

Conceber, é dar forma a alguma coisa.
E toda a criação exige esforço
E todo o esforço é dor!
Mas, sem o sofrimento a retalhar o peito,
O que seria o amor?

Não basta desbravar a terra,
É preciso regá-la com suor,
Encaminhar os caules que tombaram,
Sentir bater o coração da flor...

Em cada pedra há um epitáfio e um berço.
Só tem valor a luta em que não há quebranto.
A serra continua a desventrar-se em pão,
Muda de espanto!

É o olhar que exprime
Os mais secretos sentimentos da alma:
As nódoas recônditas do mal,
As luminosas pétalas do bem.
Trás-os-Montes - olhar de Portugal!

TRANSMONTANO (João de Sá)

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Publicada por Blogger às À Descoberta de Vila Flor a 11/07/2013 12:50:00 AM