quarta-feira, 24 de junho de 2015

[À Descoberta de Vila Flor] A Menina das Cravelinas e Bem-Me-Queres

«...Trepa-se a Vila Flor por estrada retorcida, de caracol... faz tonturas. Ao enfrentarmos o povoado, porém, que sensação de conforto! Aquilo não é um burgo alpestre - é um ramalhete de cravelinas e bem-me-queres no decote da serrania». 
Sousa Costa
É costume da Câmara Municipal da minha terra, por gentileza não sei se já imitada (ou já iniciada) por qualquer edilidade congénere, comunicar a todos os munícipes de mais aquela, apartados do berço pelos impulsos caprichosos do destino, os factos principais que respeitam ao seu grato efectivo de valorizações e encómios.
E não se julgue que a finalidade visada seja a propaganda da actuação dos presidentes, suas ideias, criações, méritos, realizações, como é de muito abuso por aí.
Não! O que eu sinto nos visos desse proceder simpático, é o carinho de manter unida a família vilaflorense, aconchegado ao lar, essa lareira que tem achas de pinho a arder eternamente sobre o trasfogueiro, inundando a cozinha de fumo, que faz bem aos pulmões e aos chouriços, largando choinas que nos caem sobre o capote, brandamente, estejamos nós lá ou no cabo do mundo.

É bom que não se esqueçam os nomes que mais fulgor puxaram à nossa «lis» doirada. Mas o que nos encanta, o que fica, é a resultante das forças que alindaram o nosso ninho  materno, tomando-o aprazível, donairoso, confortável, condicionando a beleza necessária a ouvirmos do Dr. Sousa Costa um elogio como o que encima este pequeno escrito e que nos foi transmitido pela vereação da Câmara da minha terra.


Com que então, o Sr. Dr. Sousa Costa foi a Vila Flor e, julgando encontrar um burgo alpestre, descobriu «um ramalhete de cravelinas e bem-me queres no decote da serrania»?!
Tocou-me Sua Ex.ª num dos meus queridos amores. Não sei se me zangue com ciumes, se me envaideça com orgulhos...
Dom Dinis teve a mesma agradável surpresa há 670 anos, e mudou-lhe o nome, transportando-o do sector das póvoas para o campo das flores. Dois artistas, dois sentimentais, dois poetas.
A minha terra, para ser bem tratada, só pela poesia. Ela é gaiata,. morena, dentinhos de cal, cabelos escudos, aroma de madressilva no colo de rosas brancas, menina do meu agrado, sempre jovem, com jóias ricas de família nos dedos afusados, adereços romanos, góticos, árabes, judaicos...
A serra, molosso de xisto e terra escura deitado entre o Facho e as Portas do Sol, abriga-a do norte, expõe-a abertamente às soalheiras do sul, tendo-a no regaço, como desvela da mãe.
Quem, há vinte anos, subisse às capelinhas, dispostas mesmo no alto, pela tenaz dedicação dum grande vilaflorense, que tem o nome indelevelmente ligado às graciosas ermidas - Manuel Álvares Pereira de Aragão - via o povoado, lá no fundo, começar na Santa Luzia, na «máquina» - nome consagrado da fábrica de moagem inaugurada pelo gigante João de Matos, da minha saudade de criança - na Rapadoira e por ali abaixo até à Portela.
Hoje, o passeante, quer se sente nos degraus da velha capela de N.ª S.ª da Lapa, fachada alvíssima, ponteaguda, seu portelo de mina à esquerda, encravada em ciclopes de rocha bronzeada; quer se encoste às capelas de Santo Antão e São Bernardino, de cúpula em pirâmide; quer se instale nos miradoiros do santuário hexagonal da Senhora dos Remédios, depois de refazer-se do esforço da ascensão, com um lenço que lhe enxugue a testa ou uma aba de chapéu que lhe desencalme o rosto congestionado, tem o grato prazer de verificar quanto a vilazinha subiu, como casas novas nasceram, num pululante renovar de gerações, vindo a fazer guarda de honra ao formoso edifício da «Domus Municipalis», padrão senhorial do concelho e da comarca, de costas no peito dos olivais da serra. A menina aconchegou-se melhor ao regaço da serra-mãe, como gata mimalha que se levanta para se acomodar mais consoladinha ao sol da graça. A menina enfeitou-se. Deitou fora os candeeiros mal cheirosos e fumarentos do seu «boudoir» e meteu electricidade; instalou lindas torneiras onde jorra água pura da serrania; tem um lindo telefone de plástico rosado e translúcido, sobre a mesa de cabeceira; e vem à janela admirar o recorte moderno de avenidas e pracetas recém-nadas, seus balaústres, suas copas redondinhas como hortênsias, seus canteiros de relva fresca, rampas, escadarias, globos de candeeiros, aqui e ali, num conjunto de apoteose surpreendente, embora um fundo suspiro lhe sacuda o peito, saudoso da sua velha praça, que era a mais bela iluminura do seu pergaminho, que era o seu coração, o seu carácter, agora fendida, imolada a um desalmado critério de urbanização!

 E a menina aparece no limiar da janelinha, mirando as lavadeiras nos tanques novos, entre olivedos e amendoais, onde cantam melros e rouxinóis, enfeitada com um ramalhete de cravelinhas e bem-me-queres entre os seios macios de adolescentes!
Quando, há anos, vim para o sul, proclamava com orgulho a minha naturalidade: VILA FLOR!
- Mas onde é que é isso?...
E a pergunta, quase constante, entrava-me como um punhal no peito apaixonado, entre estas costelas que se criaram com água da Fonte Romana e com pão borneiro da Párreas, trigo dessa terra feraz, humosa, florida, transmontana, cuja seiva me circula no sangue, como os caracteres do progenitor nas veias do filho que o não desmente.
Agora, vejo com esfuziante alegria que Vila Flor não é nome de qualquer Alguidares de Baixo, estranho na sabedoria comum dos nossos centros mais esclarecidos. Os jornais falam, a fama corre, percorre, e aponta-se o exemplo duma vila que em 20 anos se vestiu de novo, se toucou de graças,
se impõe, na escala do progresso, que afere os valores do país, de Norte a Sul.
Não conheço, por meu mal, o Senhor Dr. Sousa Costa. Mas o facto não me inibe de lhe deixar aqui o meu cartão de visita, agradecendo as palavras que dirigiu à «minha menina», cartão em que, sob o nome, apenas imprimo esta dignidade qualificativa: vilaflorense.

Excerto do livro Paisagens do Norte, escrito pelo Dr. Cabral Adão e publicado em 1954. Este livro teve uma segunda edição pela Câmara Municipal de Vila Flor em 1998 (Minerva Transmontana, Vila Real). Pode ser encontrado no Museu Berta Cabral, na sala dedicada a Vila Flor.

Luís Manuel Cabral Adão nasceu em Vila Flor a 24 de Junho de 1910 falecendo a 6 de Agosto de 1992, em  Almada, vitimado por paragem cardíaca, partiu, no dia seguinte, para Vila Flor, para jazigo de família.

domingo, 21 de junho de 2015

[À Descoberta de Valpaços] Possacos - Caminhos com história

No dia 14 de junho de 2015 a Comissão de Festas de Possacos levou a cabo o III Percurso Pedestre - Ponte do Arquinho, "Caminhos com história. Na noite anterior choveu torrencialmente em toda a região e a manhã mostrou-se tormentosa provocando receios na organização que chegou a por em casa a realização da caminhada. A organização vacilou mas alguns caminheiros destemidos foram chegando e "não houve como dizer não".
Apenas compareceram 1/3 dos inscritos mas, mesmo assim, o grupo era bastante heterogéneo, quer nas idades, quer na proveniência , ouvindo-se falar português, castelhano e francês.
No pequeno-almoço o folar esteve presente, ou não seja este o produto estrela de Valpaços. Os participantes aproveitaram para se conhecerem, ou para se reverem, porque alguns já se conheciam doutras caminhadas. Foram oferecidos como brindes, um boné gravado expressamente para a caminhada e uma pequena garrafa de vinho, Ponte do Arquinho.
Entretanto o estado do tempo foi melhorando, mas ainda partimos com guarda chuva, mas não chegou a ser necessário. Ao final da manhã o céu apresentava-se azul e com poucas nuvens. Depois do almoço, voltou a chover.
Iniciámos a caminhada com um breve percurso pela aldeia. Não foi possível prestar muita atenção porque o passo era muito acelerado. Eu tinha a intenção de conhecer bem a aldeia durante o período da tarde, mas isso não veio a acontecer.
Passámos pela rua Direita e pelo Largo da Fonte, único espaço que eu já conhecia. Visitámos o solar dos Xavieres. Seguimos para a igreja pela rua José Manuel Vieira. Celebrava-se a Eucaristia e não não entrámos. A igreja tem como orago Nossa Senhora das Neves, bem presente numa imagem no frontispício.
Continuámos pela Rua Martianos até a pequena capela onde fizemos a foto de grupo.
O destino seguinte seria a aldeia abandonada do Cachão. Fomos pelo caminho chamado "dos mortos" porque era por ele que conduziam os falecidos na aldeia de Cachão, para serem sepultados na sede de freguesia,
Pelo caminho foram surgindo cerejeiras e figueiras carregadas de frutos, desafiando os caminhantes, alguns não resistiram à tentação.
Eu, como habitualmente, seguia no grupo da retaguarda muito atento à paisagem, à fauna e à flora, trocando impressões com dois jovens da organização que me fizeram companhia durante todo o percurso.
Foi a minha primeira caminhada no concelho de Valpaços, por isso tudo era novo, mas muito familiar. Desde os primeiros quilómetros que fiquei positivamente surpreendido com o percurso. A organização teve imenso trabalho na limpeza de caminhos tradicionais, pouco utilizados e já tomados pelas silvas.
Nesta zona predomina o granito, por vezes com formações gigantescas e esculturalmente talhadas pelos tempos. A flora é muito variada, com árvores e arbustos dignos de referência como o zimbro, sumagre, medronheiro, espinheiro e cornalheira. A exuberância de maio já passou mas ainda havia baste colorido no hipericão, fel-da-terra, dedaleiras, arçãs ou na modesta erva-prata que cobria os caminhos.
Os motivos de interesse eram muitos, mas já se vislumbrava ao fundo as ruínas das casas de Cachão. Este curioso nome foi, por certo, herdado do rio, uma vez que cachão é uma passagem estreita no rio, mas os locais não parem fazer essa associação.
Nas ruínas adivinhava-se tudo o que uma aldeia da época necessitava: fonte, lagar, forno, capela e pequenas parcelas de terreno de onde arrancavam o sustento, juntamente com os animais que criavam. Imaginei mesmo galinhas no centro da aldeia a correrem em todas as direções. Algum porco solto, a vaguear, completamente integrado com as galinhas, os cães e os animais de tração. Chego a pensar quem habitava estes lugares eram felizes, longe da pressão dos relógios, do burburinho dos hipermercados, vivendo em família e comunidade.
Eu já ficava ali a explorar cada recanto das casas, mas o percurso estava traçado, havia que continuar.
Visitámos a pequena capela de S. Genésio (ou S. Gens?). Foi recuperada e está limpa, cuidada e bonita. Parece que todo o orgulho de muitos dos que aqui tiveram as suas raízes se concentrou na recuperação e preservação deste espaço de culto, onde se realiza uma festa no mês de agosto.
Fizemos um curto desvio ao rio Rabaçal. Foi o local mais paradisíaco que encontrei ao longo do percurso! A açude para reter as águas que faziam rodar as mós dos antigos moinhos ainda está parcialmente operacional . As águas caem em cacheiras de espuma branca. O verde da vegetação ribeirinha é impressionante . Árvores, arbustos e fetos em plena harmonia, que o homem já pouco perturba. Até a barca se foi.
A posição dos antigos moinhos é facilmente identificada pela presença de enormes mós, já cobertas de musgo, repousando na mais completa indiferença. Tudo ali era perfeito: o barulho das águas, a luz por entre as folhas dos amieiros e a cor que que voltou à normalidade depois dos trajes coloridos dos caminheiros se afastarem. É um local para revisitar.
Seguimos viagem por entre pinheiros e fragas, adivinhando hortas, vinhas e olivais nos espectros dos caules que ficaram, cada vez mais comidos pelo tempo e pela vegetação espontânea que não para de crescer. Também aqui a Comissão fez um excelente trabalho na limpeza dos trilhos.  Ao longo de todo o percurso, de onde em onde, foram colocados cartoons perdurados nas árvores. O seu teor engraçado e brejeiro despertou gargalhadas e mereceu fotografias. Foi a primeira vez que encontrei estes "quadros" e achei imensa graça. Também foram colocadas notas históricas nos pontes merecedores, enriquecendo a caminhada que assim mereceu inteiramente a designação de "caminhos com história".
Pouco tempo depois, junto ao rio Calvo, esperava-nos o reforço. Confesso que nem reparei no que no que constava. Colhi uma maçã e embrenhei-me na vegetação admirando o leito irregular , as rochas cobertas de musgo, e os regatos de água límpida que contornavam as rochas. Comer, poderia ficar para mais tarde, mas tinha que gozar o local.
A paragem seguinte foi na Ponte do Arquinho, romana, que parece integrar uma via que ligaria Braga a Astorga. Outra teoria indica que esta via ligaria o Tâmega ao Douro. Contudo, não restam dúvidas da sua origem e antiguidade e monumentalidade uma vez que o tabuleiro tem mais de 7 metros de largura.
Os sulcos gravados na calçada lembram séculos, milénios de uso dos rodados dos carros, das ferraduras do cavalos que por aqui transportaram aldeões, e fidalgos, centuriões e soldados.
Da ponte à aldeia passámos por mais um trilho muito bonito. Uma zona fresca, com vegetação luxuriante que cria um verdadeiro túnel por onde passámos.
Entrámos em Possacos pouco passava do meio dia e meio, o que nos deu ainda tempo para visitar a igreja matriz e um espaço que pretende ser um museu.
A igreja é do séc. XVII. À entrada, mesmo com pouca luz, chama à atenção o dourado do altar da capela-mor. Curiosamente ainda mantém o gradeamento a separá-la do resto da igreja. A talha dourada é realmente deslumbrante as o teto da capela também merece atenção. Tem pinturas, em caixotões, representando passagens da vida de Cristo do nascimento à ressurreição e de Nossa Senhora.
Num espaço da junta de Freguesia visitámos uma sala com artefactos antigos, principalmente ligados à carpintaria. Trata-se de um embrião de um espaço museológico que se pretende criar. Mesmo assim já reúne um bom número de peças, curioso e já em desuso que interessa preservar e mostrar às gerações vindouras.
 Terminado a caminhada foi chegado o momento de degostar as iguarias que nos tinham preparado. Não faltaram queijo, fiambre, carne e salsichas assadas, azeitonas, salada, (bom) pão, e, como prato principal, uma deliciosa feijoada de comer e não "chorar por mais" porque a panela era grande e a solução era voltar a comer.
Não falei do vinho, que era bom, do caldo verde e das frutas para sobremesa. Nestas destacam-se a saborosas cerejas, tão doces e famosas que figuram no brasão da freguesia.
Foi tudo tão bom que para e foi com muita pena que vi começar a cair a chuva que me impedir de explorar as ruas da aldeia como pretendia, mas senti-me satisfeito. Fomos bem recebidos, muito bem tratados, o percurso foi muito interessante e toda a gente foi simpática e acolhedora.

Só me resta agradecer à Comissão e à Junta de Freguesia o terem-nos proporcionado uma tão boa manhã de domingo e aos caminheiros pelo alegria e proximidade com que me trataram. Espero voltar, se não for antes, pois que seja na próxima Caminhada com História.

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Publicada por Blogger às À Descoberta de Valpaços a 6/20/2015 07:17:00 da tarde