Hoje também é um dia especial para uma assídua visitante do Blogue. Por isso decidi brindá-la com um conto. Não é um conto qualquer, mas sim um conto que, tenho a certeza, representará muito. Na impossibilidade de lhe poder oferecer flores, brindo-a com alguma das pequenas maravilhas que captei, em momentos de primavera, tal como o conto, em volta do local onde vivo, algumas na borda dos passeios.
É um pouco de Primavera, antes que o Inverno chegue.
Em tempos remotos, numa casa modesta e afastada do grande rumor da aldeia próxima, vivia uma esbelta rapariga com sua mãe viúva.
Era bela. Fascinava. Dezoito anos. Tranças pendentes sobre os ombros, de um cabelo negro e ondulado. Face morena, mas mimosa. Olhos castanhos, bem feitos, sobrepostos por cerradas sobrancelhas. Sedutores contornos do corpo, magro e bastante alto.
Frequentes vezes foi assaltada pelo amor de um conde, além de outros amores ardentes que lhe caldeavam o coração. No entanto, o apetite matrimonial era fraco, sendo bem mais intenso o desejo de sua Mãe, empenhada, dia a dia, em dá-la ao conde, que amorosamente a procurava. Apesar de este se prender fortemente a ela, Aninhas continuava fria, em assunto de semelhante espécie. Mas «água mole em pedra dura, tanto dá até que a fura»...
O Conde via, passados meses poderem transformar-se em reais os seus sonhos dourados. Uma fresca manhã ao dealbar da aurora, aparece a bater à porta do casebre. Pedia esmola, feito mendigo. Todo roto. Grossa bengala na mão esquerda. Olhos fechados, a fingir-se cego. Tronco dobrado, a fazer-se velho. Cabeça coberta por enorme chapéu cinzento, todo esburacado, com um remendo branco pregado a linhas pretas numa das abas.
Bate e começa a pedir, cantando em voz suave. Aninhas acorda, estremunhada, e sente-se atraída por aquele canto. Escuta. Parece conhecer a voz. A Mãe, sabia de tudo, pois fora ela que combinara com o conde vir ali, daquela forma.
A chama crepitante do amor vai-se acendendo. E, tocada de repente por vagos pensamentos diz para a mãe:
- Levante-se, minha Mãe,Replica a Mãe, em resposta:
Desse leve dormir,
Se quer ouvir o cego,
A cantar e a pedir.
- Se canta e pede,Diz o falso mendigo, em tom de pedinte:
Dá-lhe pão e vinho,
E o ttriste cego
Lá vai a caminho.
- Não quero seu pão,O Sol, imenso disco refulgente, surge, pouco a pouco, por entre a vasta cordilheira de montes aguçados. A capoeira começa de pôr-se alvoroçada. A aurora vai desabrochando lentamente, prometendo um sossegado dia azul de Maio.
Nem quero seu vinho.
Só quero que a Aninhas
Me ensine o caminho.
A Mãe volta a dialogar com a filha, apontando o que havia de fazer:
- Anda, anda, Aninhas,A filha levanta-se. Cumpre as ordens maternas. E, beijada a mãe, parte, acompanhando o pobre. Parecia uma tenra açucena encostada a um tronco velho e podre.
Veste a saia branca,
Carrega a roca de linho.
Ensina o caminho
Ao triste ceguinho...
Os melros assobiavam, deliciosamente. A rola começava a gemer nos ninhos. O rouxinol entoava melodias encantadoras. A água cristalina ciciava , na verde relva que cobria os campos. Bandos de pombas entrecortavam o espaço. Andorinhas deslizavam, velozes, no céu. Tudo era manso e belo, naquela madrugada.
Calcorreados longos caminhos, os pés quase esfalfados, Aninhas acaba por dizer.
- Aacabou-se-me a roca,
Esfiou-se-me o linho.
Adiante, ó cego,
Lá vai o caminho.
- Anda, anda, Aninhas,
Mais um pouquinho.
Sou curto da vista,
Não vejo o caminho.
Vislumbra-se o lugar onde são esperados pela família do conde e fidalguia amiga. Pelo que vê, ao longe, julgando tratar-se dalguma festa, canta a donzela:
Valha-me DeusEla, pensando um momento, julga ter de unir-se, irremediavelmente ao companheiro. Então principia de lamentar os tempos de outrora. Podia ter casado, feliz, com um conde e, agora, vê-se junto de um velho, pobre, sem coisa alguma:
Ea Virgem Maria.
Quanta gente passa
Para a romaria.
- Anda, anda, Aninhas,
Mete-te debaixo desta capinha.
Quanta gente vai
Para a romaria!
- De duques e condesChegou o momento asado do conde se revelar. Abraça aa jovem pesarosa e canta:
Eu era pretendida.
Agora dum triste cego
Me vejo rendida.
Eu nunca fui cegoPerante os olhares perscrutadores de Aninhas, atira com os farrapos para longe. Abre os olhos e sorri para ela, que o reconhece.
Nem Deus tal permita.
Sou um destes condes
Que lucrar-te queria.
Julgam-se felizes. A família recebe-os carinhosamente. A nobreza saúda-os. O cortejo principia a desfilar. Um cavalo novo, sela e freios dourados, transporta-os direcção à morada.
O conde louco de amor, sente-se feliz como nunca. Uma alegria imensa invade-lhe o espírito. Já possui a riqueza tão suspirada.
Aninhas, coração mais sensível vendo-se deste modo presa para sempre àquele que lhe conquistou o coração, profere o seu adeus. Sentimentos sinceros. Saudades.
- Adeus, minhas casas,O tempo passa e Aninhas recolhe à doçura abençoada do seu lar. Naquele instante, uma campainha retiniu nove badaladas, dentro do castelo.
Adeus pedra de montar.
Enquanto o mundo for mundo,
Pedra me há-de alembrar.
Adeus, minhas casas,
Meus lindos arredores.
Adeus, meus irmãos,
Meus belos amores...
Adeus, minhas casas,
Adeus aias minhas.
Adeus, minha mãe,
Que tão mal me querias.
Adeus, minhas casas,
Minhas lindas janelas.
Adeus, minha Mãe,
Que tão falsa me eras...
O conde sorriu para ela, tomando-a nos braços.
Conto recolhido no Nabo, publicado por J. N. Fonseca no jornal Mensageiro de Bragança, a 2 de Junho de 1961.
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Publicada por Xo_oX em À Descoberta de Vila Flor a 12/08/2010 09:10:00 PM
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