"Estava uma noite encantadora de Agosto. A lua cheia, já bastante elevada na cúpula sideral, muito redondinha, muito branca de prata, talvez risonha, a arbitrar-lhe uma face bonacheirona, como a imaginação dos pintores humorísticos a fantasia, derramava sobre as terras, as árvores e os casais, uma luz mortiça e fina, que tornava lúgubres os tons escuros e berrantes os tons claros.
Semelhava, este luar, um manto de melancolia, ténue, duma translucidez de neblinas, que se desdobrasse, profuso, dos ombros duma moira encantada, a tonalizar a paisagem, de mimos e sonolências.
Já poucos ruídos de vida se percebiam pela extensão da planície, além da camada de sons miúdos da bicharada noctâmbula. E o rio, que ia alquebrado e rarefeito, gemia brandamente a sua impotência nos pedregulhos da represa do moinho, que há algumas semanas jazia parado, por falta de corrente capaz de o mover.
As latadas dos caminhos faziam-lhes sombras caprichosas, de o luar penetrar os intervalos das folhas e dos cachos, desenhando-lhes os contornos rendilhados.
Não corria aragem. Não se via nenhuma luz, além das que se projectavam do firmamento. Seria, talvez, esta visão de sonho, uma expressão, na Natureza, daquela sensação que a nossa alma experimenta, sem a saber explicar: a saudade! Choupos e ulmeiros, videiras e árvores de fruto, flores e ervas pobrezinhas, saudosas do sol que lhes dá vida, mas que também as queima e resseca, por vezes! Águas do rio, orvalho das flores e até a ligeira neblina dos baixios, saudosos do mesmo astro-rei, que os torna resplendentes, os purifica, os irisa, mas que, ao mesmo tempo, os evapora e os dispersa! Os muros alvinitentes e a voluptuosidade das quebradas, a recordarem, saudosos, os gritos fortes dos boieiros e carreiros, os cantares das cachopas, as tagarelices das crianças, características das fainas do dia, para os reproduzirem em ecos sonoros, entorpecidos na doce ilusão de falas naturais, que não possuem!
Saudade nos pomares, nos pinhais, dolentes, nos povoados tristes, nas ermidas altivas, a perfurar o céu! Um manto de luz mortiça... um manto de sons tristonhos... um manto de espíritos de fadas...
Na curva dum caminho entre-muros, encoberto com a sombra duma cerejeira graúda, um homem aparecera. Àquela hora, com os receios com que se movia, o olhar estranho que as coisas dirigia, dir-se-ia que tentava qualquer marosca ou temia qualquer perigo. Nem uma coisa nem outra.
Ao fundo do caminho, que era todo coberto de ramadas e orlado por olmos, amieiros e fruteiras, destacava-se, no seu aspecto de mancha cinzenta, do porpianho de granito antigo, uma casa de lavradores, comprida, de bastantes janelas, com currais e quintal anexos. À porta principal, larga, com almofadas já esfoladas do roçar dos eixos dos carros, que às vezes calhava, estava preso pela rédea a uma mó, já gasta, um cavalo branco.
Quando o espião (chamemos-lhe assim) se apercebeu dessa presença, estacou em frente da casa e o coração bateu-lhe com mais força. Não era um bater de crime, de rancor, de maldição: era um misto de paixão e ressentimento, de orgulho que não esquece e de sensibilidade que perdoa; era uma bater de saudade, naquela noite já tão infiltrada de saudosos fluidos!!!
E ali ficou colado ao muro velho, olhando o cavalo branco e a casa, sem perceber o que lá dentro se estaria a passar. No entanto, a sua agitação íntima crescia. Súbito, abre-se a porta e aparece no vão a figura dum homem novo, muito alto, muito forte, bem trajado, que ajeitou o chapéu e se curvou sobre os joelhos para enfiar as esporas nas botas grossas. Neste homem hercúleo, logo o espião reconheceu o médico, o doutor Casimiro Teixeira. Tendo um pressentimento horrível, adiantou-se com passos lentos e disse, sossegando o clínico:
- Muito boa noite, senhor doutor Casimiro! Não me fazia agora aqui, pois não? Realmente, nem eu supunha, há dias, que tão depressa regressaria.
- Quem és tu? - perguntou o médico, pondo-se a jeito com as sombras da ramada para reconhecer o interpelador.
- Ai, tu és o Maximino? Então já te passaram os vapores? Eu bem sei por que andas a rondar esta casa, rapaz! Mas olha que se tens raiva à Amélia, desfá-la quanto antes, para depois não teres remorsos. Olha que ela está mais para morrer que para viver!"
O resto da história pode ser lida no livro O Homem da Terra, da autoria de Luís Cabral Adão, publicado em 1986.
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Publicada por Anibal G. em À Descoberta de Vila Flor a 4/15/2012 07:16:00 AM
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