É quase noite. Para os lados de S. Domingos, onde o sol insiste em permanecer, um céu pregueado de finos laivos de ametísta e rubi. Bem quero evadir-me, mas, onde quer que me oculte dou conta de um não sei quê que me persegue e invade a ponto de me anular um abraço. Sei que não me esgoto no que sou. Há cintilações e cicios que também me constituem, que em mim falam mais alto do que o troar do presente, e aos quais é preciso estar atento. Das horas ficam sempre as cinzas, onde as metáforas regressam sem que nenhum vento as arraste para as vastidões do nada.Extrato de um artigo escrito por João de Sá, no semanário Terra Quente, em 2005.
E não sei porquê (ou talvez saiba) olhando para os lados do Peneireiro, ouço, de novo, a voz ferida da incontida tristeza de Marina Tsvietaieva* afagando as pedras em jeito de arco da Fonte do Olmo, a aconchegarem o fiozinho de água quase a extinguir-se, a desmaterializar-se, quase a revelar-nos o profundo segredo da terra.
Terminou a exposição patente no Foyer do Centro Cultural de Vila Flor dedicada ao escritor vilafrorense João de Sá. Passei por lá durante a tarde, a jeito de despedida, e na melancolia da tarde dei comigo a imaginar o que pensaria o próprio autor sobre a homenagem que lhe foi feita. Bastou passear os olhos por um dos textos expostos para encontrar nele a alma do autor e compreender que ela não cabe numa exposição, por maior que ela seja. A melhor homenagem que se pode fazer a um autor é ler os seus livros. Acredito que o Dr. João de Sá aconselharia um espaço aberto, dos muitos tinham especial significado, como o Largo da Igreja, o jardim de Santa Luzia, o Rossio ou Nossa Senhora da Lapa (ou o Frade). Só num lugar assim as palavras ganham asas, tomam forma e transmutam-se na própria vila, nos sons e cheiros dos campos em redor, refletindo-se nos nuvens ou nas fragas e regressando à origem, acalentando o peito, fazendo germinar os sentimentos que nos distinguem dos animais.
A Câmara Municipal cede os livros gratuitamente, só não lê, quem não quer. Entretanto, em continuarei a divulgar pequenos excertos, aqueles que me tocarem mais. As letras não é uma área onde me sinta propriamente à vontade, mas quando elas ganham significado e se convertem em emoções até um completo analfabeto pode gostar.
*Marina Tsvetaeva (1892-1941) - Poetisa russa, que começou a escrever muito jovem e que teve uma vida muito triste e atribulada, vindo a suicidar-se aos 48 anos, em plena II Guerra Mundial, no Tartaristão.
--
Publicada por Blogger em À Descoberta de Vila Flor a 11/30/2012 08:19:00 p.m.
Sem comentários:
Enviar um comentário