"O pisar as uvas queria dizer novas emoções. Os rapazes bebiam um copo pequeno da aguardente a fazer no alambique e pisavam, pisavam, cantando e rindo.
Uma noite, o Roberto chegou com a sua perna aleijada e quis pisar uvas com eles. O médico dissera que fazia bem à paralisia e ele queria curar, até perder a vergonha de passar na praça, manquejando e vendo risos nos rostos dos que estavam parados.
Entrou para o lagar e pisou as uvas com gana, esquecendo que era aleijado, que os rapazes riam, pensando no dia em que jogaria futebol como os outros, correria atrás de ilusões e deixaria de chorar às escondidas.
E toda a noite pisou uvas, cantando como sua mãe lhe ensinara, canções que ficaram marcadas nos ouvidos do homem que fazia aguardente e que sentiu tanta amargura a ponto de beber o líquido adocicado para ouvir melhor aquela voz trazida pela angústia do dia que nasce e não é para todos, das sombras nos pensamentos, da ventura egoísta dos outros. E do desprezo que o Roberto começava a sentir por quem não o merecia sequer.
Só não desprezou as uvas que se esmagavam debaixo do seu pé torcido e lhe diziam que haveria de curar e, mais ainda, que ele não era aleijado mas sim os outros, os que riam quando ele passava manquejando.
E, quando de madrugada saiu do vinho mosto, sentiu que estava curado."
Excerto do livro Libelo Acusatório, da autoria de Modesto Navarro, Publicado em 1999 pela Caminho. A primeira edição desta obra foi em 1968, pela Prelo Editora.
A fotografia foi tirada em Seixo de Manhoses, numa manhã de vindima, na Quinta de Valtorinho.
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Publicada por Anibal G. em À Descoberta de Vila Flor a 10/12/2011 06:49:00 PM
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